domingo, 29 de maio de 2011

Vida líquida

“Agora estou inclinado a acreditar que duas mudanças básicas nas condições de vida influenciaram uma alteração significativa no relacionamento “Eu e o Outro” (...): as chamadas “redes sociais” on-line e a “diáspora” das vizinhanças off-line. O primeiro desvio tende a “achatar”, “banalizar” as interações humanas; ele deixa os contatos superficiais e rotineiros (como se fossem uma obrigação), além de “vaciná-los” contra os perigos das conseqüências (como o que a pílula anticoncepcional fez anteriormente com as relações sexuais). Os encontros humanos tendem a ser substituídos por um interfaceamento de “superfícies”, de “quadros de apresentação” destinados à exibição pública – embora com a condição de que são justamente esses aspectos do “eu” que até recentemente eram tratados como os mais particulares, íntimos e sigilosos e que agora muitas vezes são os primeiros a serem expostos publicamente, criando com isso uma impressão falsa e enganosa da “profundidade” da relação.
O segundo desvio fortalece a tendência onipresente da “mixofobia” (medo mórbido de sujeira, imundície ou contaminação), embora com intensidade variável, em ambientes urbanos, ou seja, sob a condição da perpétua proximidade de estranhos. Com a dispersão ou “diáspora” (isto é, o fim das estratégias de “assimilação” e da “unificação de identidade cultural” empregadas na fase de construção da nação na era moderna, e o reconhecimento da permanência da diferenciação étnica, religiosa e de modo de vida), a perspectiva multiculturalista tende a evoluir e se transformar em uma prática multicomunitária: viver “ao lado de”, mas não “com” estranhos, e confinar a interação a contatos funcionalmente indispensáveis e utilitários. Isso, por sua vez, promove uma interiorização comunitária e o encolhimento do interesse e da curiosidade em relação à “alteridade”, agora identificada com os sintomas dos estranhos não bem-vindos, mesmo que tolerados, por necessidade. Em longo prazo, isso também leva à erosão das habilidades sociais da variedade off-line e, em conseqüência disso, ao reforço do autoisolamento comunitário e a uma separação intercomunitária e alienação mútua.
(...)
Jamais responderemos à questão de quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo. Do mesmo modo, jamais responderemos à pergunta se a mídia eletrônica “é a razão de ser” da vida líquida ou vice-versa. A única coisa que podemos opinar responsavelmente é que eles são “unha e carne”, se encaixam perfeitamente. Com toda certeza, ambos se sentem absolutamente à vontade um com o outro, enquanto a questão de se eles sobreviveriam (ou se alastrariam com a velocidade de um incêndio florestal) em qualquer outra companhia só pode ser respondida hipoteticamente e está destinada a ser uma questão de disputa. Da maneira como as coisas estão agora, a vida líquida sem a facilidade da mídia eletrônica é tão inimaginável para nós como a mídia eletrônica em um ambiente sociocultural não líquido.”

Zygmunt Bauman, em entrevista à Revista Filosofia, nº 58.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Respire

Mantenha a calma. Respire. Tudo fluirá se você se organizar, se você não se distrair sem perder a leveza. Relaxe. Não pense apenas nisso. Pense que foi longe. E foi. E vai mais.

Reduza sua multiplicidade, mas não deixe de escrever.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Sublime vazio


“Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. E um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sobre um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.”

Clarisse Lispector, “Insônia infeliz e feliz”, em “A Descoberta do Mundo”.

sábado, 7 de maio de 2011

O presente sem cartão


Tenho um presente
Porém sem cartão
O presente é sincero
Por isso peço
Aceite-o de coração

Na fome do tempo e do dinheiro
Há sempre espaço para o devaneio
E a vontade de criar
A coisa mais singela
Que é a prova de amar

Aceite-o de coração
Meu presente sem cartão