quinta-feira, 30 de junho de 2011

Desequilíbrios

Acordo, levanto-me e durmo. Assim tem sido meus últimos dias. Parece, à primeira vista, que tudo está morno, tranqüilo, entediante. Mas há um turbilhão em minha cabeça. Meu coração acelerado, como agora. Há algo fluindo de modo estranho, acorrentando-me aqui dentro. Não consigo e não quero fazer mais nada. Apenas me acalmar; mas não quero parar de pensar.

“Tudo lembra nossas mães, a maneira como elas nos criaram. Isso também acontece comigo.”

Nunca neguei que o problema é o equilíbrio. Eu preciso encontrar um equilíbrio para as coisas. Tenho conseguido isso, mas há coisas que me desestabilizam. O passado, por exemplo. O passado e seus fantasmas. Suas fantasias, desejos, sonhos irrealizáveis. Coisas bobas, idiotas, porém importantes. Não é bom rever pessoas que você não quer rever. Pior do que isso é rever quem você quer, mais do que tudo, rever. E se deparar com a verdade. Que verdade? Talvez ela seja tão perturbadora justamente porque não se sabe o que ela é. Desconheço a natureza dessa verdade.

“Você precisa aprender a entrar no jogo. Tudo é uma sutileza.”

Preciso de mais um equilíbrio. Uma corda bamba que ao final leva a não-sei-o-quê. Ora veja: Preciso de mais um equilíbrio. Demais. Minha fala sempre me trai. Demais. Eu não sou de equilíbrios. Mas se não houver equilíbrios, morrerei. Será esse o meu destino?

Eu crio coisas. E isso também me desestabiliza. Quero parar.

sábado, 25 de junho de 2011

Psicose acadêmica


Há alguns dias, correu pelos corredores da faculdade a notícia sobre certa aula de psicanálise, que teria suscitado discussões a respeito da transexualidade, considerada uma psicose pela professora.
Segundo o que chegou aos meus ouvidos, ela apontou que a psicose envolve alterações na percepção e sensação do corpo, e que a transexual, ao se sentir do sexo oposto, apresentava uma realidade outra a respeito do seu corpo, um delírio, no qual ela teria a convicção de pertencer a outro sexo, apesar da evidência genital. Para reforçar seu argumento, criou o seguinte exemplo: um paciente psicótico acredita que é uma borboleta. Por mais que apontemos as evidências contrárias, o psicótico continuará acreditando fielmente em seu delírio. Da mesma forma, a pessoa transexual acredita que é do sexo oposto. Defendeu a importância do acompanhamento terapêutico antes da cirurgia de transgenitalização, que dura dois anos, e afirmou que muitas transexuais, depois da cirurgia, “surtam”.
Já escrevi aqui sobre a dificuldade em perceber as bobagens ditas por alguns professores justamente porque eles são professores. Ao assumirem uma posição de poder, eles se tornam inquestionáveis no que dizem. Não nos damos conta disso e qualquer coisa que seja proferida por eles ganha automaticamente status de verdade. Não questiono sua posição de poder-saber, como se eles não estivessem num lugar que é legitimamente deles. Eu questiono nosso silêncio diante disso.
Confesso com humildade que meu conhecimento em Psicanálise é medíocre. Se quisesse questionar essa hipótese a respeito da transexualidade dentro da teoria psicanalítica, eu não conseguiria sair do lugar. Contudo, acredito que a Psicologia, como qualquer outra ciência, não pode se desvincular da experiência, da vivência do campo e da história crítica. A Psicologia, com suas diferentes linhas e teorias, não pode se construir dentro de um castelo acadêmico isolado do mundo, criando sua própria realidade (isso sim é uma verdadeira ‘psicose acadêmica’). É preciso se envolver com o objeto, fazê-lo falar, e não se distanciar e elaborar lindas teorias com reconhecida validade teórica, mas que são um fracasso em termos de validade empírica.
Um quadro psicótico se caracteriza, entre outras coisas, por uma perda de contato com a realidade. Uma pessoa que crê ser uma borboleta acredita que é uma borboleta e pronto. Ela não se convence com as provas ao contrário. Ela não sofre diante das evidências, diferentemente da transexual. Fazer essa comparação – de uma pessoa que acha que é uma borboleta com uma pessoa transexual – revela o desconhecimento daquilo que de fato é a experiência da transexualidade. A transexual não acredita que é de outro sexo, ela sente-se de outro sexo. A mulher transexual, por exemplo, sabe que biologicamente é um homem, mas sente-se uma mulher. E sofre com isso. Ela não perde o contato com a realidade, muito pelo contrário: seu sofrimento é a prova de que ela percebe e reconhece a realidade. Nesse sentido, a transexual não nega seu corpo.
Sim, mas há os vários casos de transexuais que, não dando real importância ao acompanhamento psicológico obrigatório, surtam depois da cirurgia, por não estarem ‘prontas’ para uma mudança tão radical. Mais uma vez, a bela teoria dada em aula não levou em conta a experiência das próprias transexuais, suas vozes, sua opinião, além dos estudos sobre o assunto. O acompanhamento é obrigatório, o que já é uma contradição, uma vez que a demanda é – ou deveria ser – voluntária. Ao ser obrigatório, o acompanhamento se torna uma avaliação. A transexual precisa ser ‘aprovada’ para fazer a cirurgia. Ela começa então a mentir, a dizer apenas aquilo que favorecerá sua ‘aprovação’. Mente a um ponto em que ela própria começa a acreditar em suas mentiras. Ela engana a si mesma, achando que está – e pode não estar, há casos e casos – pronta para a mudança de sexo. O acompanhamento, portanto, é um ponto muito controverso, que precisa ser repensado, colocado em questão, e não ser apenas imposto para depois alguém dizer que, se a transexual surtou, é porque o tratamento não foi ‘bem conduzido’.
Como se pode ver, não tenho a pretensão – e nem a capacidade – de formular uma teoria a respeito da transexualidade. Apenas trouxe alguns pontos já apresentados em eventos sobre transexualidade que visitei, ao ler sobre e ao conversar com transexuais. Isso é fundamental para tentar compreender a transexualidade. Parece-me óbvio e redundante, mas parece que para algumas pessoas não é. Não adianta tentar abrir a caixa de ferramentas e escolher a esmo algumas peças que pareçam encaixar no objeto de modo satisfatório. É preciso mais do que isso. Mas agora, eu pergunto: o que é mais confortável para alguém que está em seu castelo acadêmico? Falar da janela ou descer ao campo?

sábado, 18 de junho de 2011

Confissões noturnas III

Last Friday night, yeah, I think we broke the law.” Kate Perry, “Last Friday Night (t. g. i. f.)”.

Cheguem perto, bem perto. Estamos juntos outra vez. Como começou, continua. E quem sabe, termina. Nós três. Alguém espera alguma sugestão, alguma ordem. Mas ninguém é ousado ou cínico o bastante. Outros presentes. Estão no jogo? Não sei, não sabemos. O álcool desperta nossos desejos.

“A palavra final é sua.”

Vamos lá, leve-me. Faça-me rir. Já ouvi o bastante, está claro, não precisamos de indiretas. Mas algo em mim diz não. Tento não ouvir o que digo para mim. Não quero dar ouvidos a mim mesmo. Então entro no fogo, com medo de me queimar. Brinco com a situação, com vocês e comigo mesmo. Sinto-me constrangido agora. O que estou fazendo? Ora, qual o problema?

Estou com frio, aqueça-me. Abrace-me. Mas não me ligue no dia seguinte. E ficamos apenas na vontade. Na vontade oculta, hipócrita, gostosa. Vamos embora. Nosso encontro triplo se deu ao acaso e ao acaso pertence.

There's a fire starting in my heart, reaching a fever pitch, it's bringing me out the dark.” Adele, “Rolling in the deep”.

O que é da noite deve ser devolvido a ela. Por isso, eu confesso. Cheguem mais perto, por favor, tenho um segredo para contar a vocês. Um terrível e delicioso segredo: eu não consigo amar ninguém, não mais.

sábado, 11 de junho de 2011

Espetáculo do vazio


“Somos todos DJs, apresentadores e animadores: ligue na FM e será envolvido por uma onda de músicas, de mensagens rápidas, de entrevistas, de confidências, de ‘discursos’ culturais, regionais, locais, de bairro, de escola, de grupos restritos. Democratização sem precedentes da palavra: todo mundo é incitado a ligar para a central telefônica, quer contar algo a partir de sua experiência íntima, ou pode se tornar um locutor e ser ouvido. Isso vale nesse caso como no dos grafites nas paredes de escolas ou no dos inúmeros grupos artísticos: quanto mais a gente se expressa, menos há o que dizer; quanto mais a subjetividade é solicitada, mais o efeito é anônimo e vazio. Esse paradoxo é reforçado também pelo fato de que ninguém, no fundo, está interessado nessa profusão de expressões, com uma exceção que deve ser levada em conta: o próprio emitente ou criador. Isto é, exatamente, o narcisismo, a expressão sem retoques, a prioridade do ato de comunicação sobre a natureza do comunicado, a indiferença em relação aos conteúdos, a assimilação lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade e sem público, o remetente transformado em seu principal destinatário. Daí essa pletora de espetáculos, de exposições, de entrevistas, de proposições totalmente insignificantes para qualquer pessoa e que não levam em conta nem mesmo a ambiência; outra coisa está em jogo: a possibilidade e o desejo de se expressar qualquer que seja a natureza da ‘mensagem’, o direito e o prazer narcisista de se manifestar a respeito de nada, por si mesmo, mas retransmitido e amplificado por um meio de comunicação. Comunicar por comunicar, expressar-se sem qualquer outra finalidade a não ser expressar-se e ser ouvido por um micropúblico, o narcisismo revela, tanto aqui quanto em outros aspectos, a sua conivência com a ausência de substância pós-moderna, com a lógica do vazio.”

“A Era do Vazio”, de Gilles Lipovetsky.

sábado, 4 de junho de 2011

Fé e obras


“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Evangelho Segundo Mateus, 19:19.

“O cristianismo morreu na cruz.” Nietzsche, em “O Anticristo”.

Acredito que, se alguém lê esse blog não muito atraente, deve ter em algum momento percebido minha implicância com certa religião, a saber, o cristianismo. Talvez seja verdade que meu olhar, hoje, esteja por demais contaminado por minha dolorida vivência no modo predominante de professar a fé cristã. Mas é inegável o papel da religião na constituição das subjetividades, na história do mundo. Se esse papel é indispensável ou não, isso é outra questão. O que quero pontuar aqui é que, assim como sua importância é inegável, também o é o sangue – seja simbólico, seja real – diariamente derramado pela religião cristã.

Há alguns dias, manifestei-me contra um ponto de vista que era, a meu ver, declaradamente preconceituoso e discriminatório. Tratava-se de uma crítica ao chamado “kit anti-homofobia”. Entre os argumentos apresentados, o kit seria uma afronta às famílias, um desrespeito às crianças que teriam sua sexualidade “discutida” e que era um direito dos pais ensinarem aos filhos que o “certo é ser hétero”. O tal kit, ao invés disso, é apenas uma tentativa de trazer à discussão um assunto do qual não se fala nas escolas, mas que gera exclusão e violência. Uma tentativa de mudar formas preconceituosas de pensar, de tirar a homossexualidade desse véu de estranheza/anormalidade/imoralidade que a história a revestiu.
Mas, como era esperado, ao apresentar um ponto de vista dissonante de uma lógica fundamentada numa irracional racionalidade religiosa, os argumentos que se seguiram foram todos discriminatórios, porém num tom assumidamente religioso, ‘cristão’. Até me deparar, então, com a pérola – que já é bastante conhecida – “amamos o homossexual, mas não o homossexualismo”. Frase tão perversa quanto aquelas de ódio explícito, pois ambas levam a um mesmo fim: diferenciação e discriminação. Ficou implícito, porém evidente para mim, que a homofobia é vista como liberdade de expressão, uma liberdade que é fundamentada e legitimada pela bíblia.
Pois bem, a justificativa para tamanha insensatez é bíblica. Assim como muitas outras. Eu posso usar a bíblia para defender o racismo, posso usá-la para defender o anti-semitismo, a violência contra a mulher e crianças. Posso usar a bíblia para defender a escravidão. Aliás, ela já foi usada para tudo isso. Ela tem referências, justificativas e defesas para tudo isso. Dependendo do contexto histórico, econômico, social e cultural no qual se insere, dependendo da leitura feita dos textos ditos sagrados, dependendo dos interesses envolvidos em seu uso, a bíblia pode – como pôde – ser utilizada para variados fins. Hitler usou a bíblia para perseguir judeus. Padres usaram a bíblia para orientar escravos a serem obedientes. E bispo Macedo usa a bíblia para ganhar dinheiro; afinal, ela também é bastante útil para um cristianismo neoliberal.
O maior problema da religião – e talvez esse problema seja a razão de sua existência – é tentar congelar, enrijecer, naturalizar aquilo que é contingente e, portanto, mutável. A ‘palavra de deus’ inteira, do antigo ao novo testamento, é clara em relação à escravidão. As referências à homossexualidade não chegam a dez versículos, controversos e sujeitos a variadas interpretações (há linhas de interpretação, por exemplo, que defendem que a bíblia não condena a homossexualidade). Mas por que uma coisa foi revista e hoje é simplesmente ignorada nas atuais leituras da bíblia – e muitas vezes submetida a metáforas forçadas – e outra não? A resposta não está na bíblia, não está no seio da igreja: a resposta está num tabu da sexualidade, no entendimento que persiste da homossexualidade enquanto desvio/imoralidade. Além do desenvolvimento do capitalismo, para o qual parecia ser desinteressante manter a escravidão, houve movimentos fortes a favor da defesa dos direitos humanos em todo o mundo, o que levou a igreja cristã a reconsiderar seus princípios e valores, sua visão do material e do imaterial; enfim, o cristianismo precisou se repensar. O mesmo, hoje, está acontecendo em relação ao entendimento da sexualidade humana. Acredito que apenas alguns séculos serão necessários para que a igreja cristã reconsidere o entendimento que tem a respeito da homossexualidade e, por exemplo, volte – isso mesmo, “volte” – a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Diante dessa argumentação, fui criticado por supostamente querer me colocar no lugar de vítima. É curiosa essa tendência em individualizar a questão, em não perceber o problema de um sistema inteiro, mas de apontar e até inventar o problema daquele que não se adéqua. Não se trata de eleger vítimas, menos ainda de me auto-eleger vítima. Não acredito na pura dicotomia agressor X vítima. Eu acredito na constante atualização de discursos e práticas que vitimizam. Discursos e práticas que diferenciam, que segregam, que discriminam. No caso do cristianismo, fé e obras que fazem sangrar.

Tocar nesse assunto, eu sei, é tocar numa das feridas mais doloridas da história do cristianismo. É fazer doer uma fé compartilhada por muitos. E muitos próximos, muitos queridos. Porém, como dissera a uma amiga, não me silenciarei diante de crueldades revestidas de amor. Não me calarei quando a dignidade de algumas pessoas for desrespeitada, mesmo que à custa de amizades.
Eu não defendo o fim do cristianismo, embora ache que o atual, muito longe de ser um cristianismo genuíno, faria um bem a todos nós se fosse para outro planeta. Como disse Nietzsche, o verdadeiro cristianismo morreu na cruz. Eu acrescentaria que ele morreu e não ressuscitou no terceiro dia.