sábado, 27 de outubro de 2012

O abraço de Proulx


A coisa de que Jack se lembrava e com que sonhava de uma forma que não conseguia evitar nem entender era a vez, naquele verão distante na Brokeback, em que Ennis chegara por trás e o puxara para junto dele, o braço mudo satisfazendo alguma fome compartilhada e assexuada.
Eles haviam ficado daquele jeito muito tempo diante do fogo, que ardia lançando reflexos vermelhos de luz, a sombra de corpos, uma coluna única na pedra. Ouvia-se o tique-taque dos minutos no relógio redondo no bolso de Ennis, dos gravetos virando carvão no fogo. Estrelas atravessavam as camadas de calor onduladas em cima do fogo. A respiração de Ennis saiu lenta e calma, ele gemeu, balançou um pouco no clarão e Jack encostou-se no palpitar regular do coração, as vibrações do gemido como uma eletricidade fraca, e, em pé, pegou um sono que não era sono mas outra coisa sonolenta e hipnótica até que Ennis, desencavado uma expressão enferrujada mas ainda conveniente de sua infância antes de perder a mãe, disse:
– Hora de ir para a cama, garoto. Já vou indo. Vamos, você está dormindo em pé feito um cavalo – e deu uma sacudida em Jack, um empurrão e foi-se embora na noite. Jack ouviu o barulho de suas esporas quando ele montou, as palavras “até amanhã”, e o bufar do cavalo, atrito do casco na pedra.
Mais tarde, aquele abraço sonolento consolidou-se em sua memória como o único momento de felicidade natural encantada em suas vidas separadas e difíceis. Nada estragava aquilo, nem mesmo o entendimento de que Ennis então não o abraçaria de frente porque não queria ver nem sentir que era Jack que tinha nos braços. E talvez, achava, nunca passassem muito daquilo. Que seja, que seja.

“O Segredo de Brokeback Mountain”, de Annie Proulx.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

As ruas de João


Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

João do Rio, em “A alma encantadora das ruas”.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Tristes retornos

“Sim, quem nunca chorou
Certo nunca amou
Talvez nem alma tenha para sentir”
“Lágrima”, Maria Bethânia.

Palavras tortas e mal ditas
Contudo sinceras
Saudosas de teu olhar
O medo em parecer patético
Mas a necessidade de falar
De ligar
Tristes retornos sob a lua

Um sonho não compartilhado
Um sonho bobo, de tanta criação
Toda noite
Álcool e desejo de ti
Tristeza, lágrimas
A dor da rejeição
A dor do carinho dispensado
A incapacidade de esquecer
E a vontade de viver

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

As metades de Aristófanes


Aqueles, porém, que são uma secção de homem ligam-se a homens e, enquanto são jovens, amam os homens e sentem grande prazer em deitar-se e serem abraçados por eles.
Há quem pretenda que eles não têm vergonha. Não é verdade: pois não é por impudência, mas por audácia, coragem e virilidade, que eles assim procedem, amando o que lhes é semelhante. E eis uma prova decisiva: quando atingem seu completo desenvolvimento, os jovens que possuem esta natureza são os únicos a se portarem como verdadeiros servidores do Estado. Quando, um pouco mais velhos, praticam a pederastia e não demonstram o mínimo desejo de contrair matrimônio e de ter filhos. Se casam, fazem-no unicamente para ceder à opinião pública, que a isso os obriga, pois para eles basta apenas viver com seus amados.
Um homem desta espécie, portanto, terá sempre de ser pederasta, e sempre enamorado da parte que lhe corresponde.
Tanto o pederasta como qualquer outro, quando encontram a sua metade correspondente, são transportados por uma onda de amor, de ternura e de simpatia; para tudo dizer numa palavra, não desejam estar separados nem um instante sequer. E são essas as pessoas que vivem juntas toda a vida, em conseguirem aliás explicar o que mutuamente esperam uma da outra; pois não parece ser o prazer dos sentidos a causa de tanto encanto em viver juntas. É evidente que a alma de cada uma deseja outra coisa que não conseguem dizer o que seja, que pressentem e às vezes exprimem de maneira misteriosa. Quando se encontram no leito uma ao lado da outra, se Hefaístos [deus dos ferreiros] então aparecesse com suas ferramentas e lhes perguntassem: -- “Que desejais, ó homens, um do outro?”, por certo nada saberiam dizer. Se Hefaístos perguntasse ainda: -- “Desejais, acaso, ficar no mesmo lugar, sempre juntos, inseparáveis, tanto de dia como de noite? Se quiserdes, derreter-vos-ei, e de dois fundirei um todo único. Agora, sois dois – depois sereis um único homem. Enquanto viverdes, sereis um só pela comunidade da vida; e quando morrerdes, também lá embaixo, no Hades, não deixareis de ser um em vez de dois e comum igualmente será a morte! Vede se é isso o que efetivamente desejais, e se, obtendo-o, sereis felizes?”
Ao ouvir tais palavras, não haverá um só, creio, que dissesse não, que desejasse outra coisa. Todos, ao contrário, teriam a impressão de que acabavam de ouvir precisamente aquilo por que ansiavam há tanto tempo! Ser unido e fundido no amado! Serem apenas um!
E a razão disso é que assim era nossa antiga natureza, pelo fato de havermos formado anteriormente um todo único. E o amor é o desejo e a ânsia dessa completação, dessa unidade.

Trecho do discurso de Aristófanes, em “Banquete”, de Platão.