terça-feira, 18 de junho de 2013

Dezessete de junho de dois mil e treze


A imagem distorcida e medonha do helicóptero desfila pelo prédio espelhado. Vejo apenas o reflexo, mas o som é alto. Somos vigiados durante todo o percurso. Há uma tensão silenciosa, acobertada pela minha ira e minha repentina esperança.

Muitos não sabem, muitos não entendem, mas a insatisfação com o aumento das passagens é apenas a ponta de um imenso iceberg de mal estar. Os protestos, pacíficos ou violentos, próximos ou distantes, indicam um misto de esperança e desespero. Não há mais confiança nos poderes, nos governos, nos partidos, nas instituições, nas representatividades. As trevas tomam conta do país e muitas vezes a violência é a saída mais fácil, mais imediata. Estamos perdendo tudo que temos; por isso, incendiamos nossos carros.

A massa chamou a atenção dos poderosos, que, todavia, não se intimidaram. Os retrocessos avançam e com rapidez assustadora. Princípios e valores são pisoteados. A violência é inevitável.

Observo as pessoas em suas rotinas anônimas e desinteressantes, acreditando que não há política em suas vidas medíocres. Estou arrasado. Pela primeira vez, senti mais do que raiva, mais do que ódio. Senti tristeza. Uma tristeza profunda, que me desacredita de tudo. Minhas lágrimas são pela minha cidade, pelo meu país. Não sou patriota, não quero mais viver aqui. Morar em outro país nunca passou pela minha cabeça, mas agora esta é uma possibilidade a ser considerada. Penso em fugir de tudo isso, me esconder de tanta escuridão, de tanta destruição, de tanta desesperança. Quero me desenraizar.

Eu precisei caminhar com a multidão. Precisei estar lá, entre os insatisfeitos. Precisei carregar vinagre e sentir medo. Precisei gritar e xingar, sentir a ira coletiva atravessando meu corpo. E saí revigorado. Saí grato por saber que alguma coisa pode ser feita, mesmo que essa coisa seja apenas um grão no mar difuso e desesperado, sem causa aparente. 

Talvez não haja revolução. Talvez haja destruição. Minha ou do Brasil, eu não sei.

sábado, 1 de junho de 2013

As horas de Drummond

É hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
Desta hora tenho medo.

É hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.

É hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz – morte – mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.

“Anoitecer”, Carlos Drummond de Andrade, “A Rosa do Povo”.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Pensamento vazio

Tudo está tão repetitivo... Acho que é tudo uma questão de autonomia. A questão central é autonomia. Eu preciso aprender a me libertar. Preciso aprender a ter o que quero sem precisar de você, nem ninguém. Preciso aprender a me contentar com minha força, que não é pequena.

Talvez eu precise parar de escrever.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

À procura de Drummond


Easy now, take things slow
Less is more, more to show
Keep your cards to make your play
Don't need to get all the way
No need to try and nothing to do
“Easy Now”, Hundred Little Reasons.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Trecho do poema “Procura da Poesia”, Carlos Drummond de Andrade, “A Rosa do Povo”.

domingo, 12 de maio de 2013

Considerações de Drummond



Hello, come on in and take your coat off.
Would you like a cup of tea?
With milk and sugar.
How have you been?
“Small Talk”, Hundred Little Reasons.

Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Trecho de “Consideração do Poema”, Carlos Drummond de Andrade, “A Rosa do Povo”.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Palavras em silêncio



Não fale comigo, foi o que pedi. Estou chateado, com muita raiva. Preciso ficar só, preciso pensar, racionalizar isso. Mas você insistiu em me telefonar, em fazer o jogo se inverter, de me colocar numa situação ainda mais desconfortável, ainda mais agonizante.
Você acertou em cheio. Tocou minha ferida mais dolorida, nunca cicatrizada. Lembro-me daquela cena da infância, como se fosse hoje, como se estivesse acontecendo agora.
Você teme que eu deixe de amá-lo. Mas você não entende? O problema não é você. Feriu-me sem dar-se conta e quando me deu a oportunidade para fazer o mesmo, eu voluntariamente me desarmei, pois não sei como colocar o que sinto em palavras, não sei transformar uma dor em palavras que façam doer novamente. E te decepciono. Você me garantiu o direito da misericórdia final, mas eu preferi permanecer em silêncio. Tenho medo de que esse silêncio destrua o que nós construímos. Tenho medo de que o silêncio também me destrua.

Ao mesmo tempo em que essa ferida me aflige, ela me dá certo orgulho. Pois é ela que me torna único. Ela define parte de mim, me diferencia dos demais, revela que sou alguém com algo único, mesmo que esse algo não seja necessariamente bom.

Eu preciso fazer análise.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Foi-se


Só pra você saber
Eu esqueci você
E se o meu olhar cruzar com o seu é porque você tá no caminho
“Eu Esqueci Você”, Clarice Falcão.

Voltamos enquanto tudo se vai, enquanto tudo se foi. Por esse tempo, um ano inteiro e um pouco mais, pensei que teria um infarto se te reencontrasse. E como eu imaginava, como imaginei, como pensei, exatamente do jeito que eu queria que fosse, foi. E ainda assim uma surpresa, mais surpresa ainda por ser tão banal, por não ter acontecido infarto algum. Cruzei com seu olhar no meio da multidão feia e desvairada. Depois de um breve susto, o inacreditável:

Eu não senti nada por você.

Talvez certa nostalgia, certa saudade, não sei. Mas algo muito fugidio e pequeno. Um simples encontro saudoso. Sem dúvida, isso é de se lamentar. Mas fazer o quê?

Parei de escrever por você, assim como volto a escrever por você. Essas palavras são a prova de que escrever nem sempre faz bem.

Foi-se pela foice do tempo. A vida segue. O amor segue.

A gente ri, a gente chora
E joga fora o que passou
A gente ri, a gente chora
E comemora um novo amor
“Novo Amor”, Maria Rita.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O profeta que surgiu das chamas


Esse trabalho estava engavetado há um bom tempo, mas depois da tragédia de Santa Maria percebi que precisava divulgá-lo. O que aconteceu nessa cidade nos impactou e nos deixou sem palavras, o que talvez nos leve ao medo, à resignação ou à revolta insana. Mas as boas palavras vieram até mim, no momento certo. Alguém sabia que eu estava inquieto com tudo isso e, mesmo que não conseguisse me concentrar de início, tomado pelo horror, logo percebi que era preciso “elaborar o passado”. O segundo maior incêndio da história do país levou-me a recordar do primeiro e de seus desdobramentos.

Sim, é preciso voltar-se para o que ficou para trás e entender melhor o que ficou conosco. É preciso ter medo para ter coragem e seguir em frente. De uma tragédia como a de Santa Maria saem coisas ruins, mas também coisas boas. Sim, é difícil pensar em algo bom nesse momento de tanta dor, mas o fim pode ser o prenúncio de um novo início.

É nessa perspectiva que me volto para o Profeta Gentileza.

Gentileza e medo. Eu poderia escrever um texto falando sobre a experiência de criar meu próprio catálogo das obras urbanas do Profeta Gentileza, localizadas ao longo da Avenida Brasil, apontando a originalidade estética e a bela mensagem desse trabalho tão pouco conhecido. Todavia, falar da obra do Profeta e ignorar todo o contexto no qual ela se insere remete a uma diminuição de seu significado, à redução do potencial daquelas palavras pintadas.
Após a tragédia do Gran Circus Norte-Americano, em 1961, na qual mais de 500 pessoas morreram em um incêndio, o homem que seria conhecido como Profeta Gentileza teve uma ‘relevação’. Construiu uma casa com um grande jardim no local do incêndio, consolou os parentes das vítimas e saiu a pregar mensagens de paz e amor, além de escrevê-las nas pilastras dos viadutos que rasgam as ruas no entorno da Rodoviária, como Avenida Brasil e Rodrigues Alves.
Fato é que o acontecimento do circo marcou o Profeta: não por acaso, seu Livro Urbano, hoje considerado patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, começa no cemitério do Caju, no capítulo 55, com algumas mensagens breves escritas no início de um dos viadutos, e termina na Rodoviária Novo Rio, no capítulo 1. Parece uma referência à vida ressurgindo da morte, ressurreição, superação de algo terrível. O capítulo 1 é a celebração do movimento, da vida, da passagem. Sua grafia assume um estilo claramente circense, e referências à tragédia aparecem de modo muito sutil, vez e outra. E se num primeiro olhar as mensagens de Gentileza fazem um apelo a uma fé delirante, com mais cuidado notamos que a religião enquanto algo oficial, institucionalizado, é menos importante quando ele diz que “a igreja é o bom coração, o altar é o bom pensamento”.
Gentileza defende gentileza acima de tudo, mas esta é ameaçada pelo “capetalismo”. O Livro Urbano do Profeta parece um delírio interminável, envolvendo mensagens de amor, paz, religião, fé e demônios. Numa primeira leitura, parece não haver nenhum sentido. Seu trabalho, contudo, lembra o livro “Todos os cachorros são azuis”, de Rodrigo Souza Leão, que escreve uma sequência aparentemente desvairada de alucinações, delírios, crenças religiosas e eventos sobrenaturais. Mas há um sentido na loucura do autor, há um fio lógico, algo grandioso e firme entranhado na loucura, que só um olhar despretensioso consegue perceber. Talvez a loucura seja necessária para que algo grandioso aconteça... As mensagens do Profeta existiriam sem sua suposta loucura? A sensação ao ler o livro de Leão é semelhante àquela resultante da contemplação das pinturas do Profeta. Todavia, enquanto o primeiro fala do horror que envolve a loucura e a internação, no segundo, por entre suas letras circenses e códigos difíceis de decifrar, deparamo-nos com uma bela e forte mensagem de amor e senso comunitário.
Mas, como dito anteriormente, analisar as obras como se estas estivessem isoladas do mundo não é o suficiente. A região na qual elas se inserem está recheada de artes urbanas das mais variadas, com boa parte dialogando, homenageando e até questionando as mensagens do Profeta. Artistas urbanos que, embora anônimos, são reconhecidos através de seus personagens e imagens espalhados por toda a cidade. Mas isso é pouco para dar uma ideia do entorno: as pinturas do Profeta se encontram num lugar assustador e perigoso. Um lugar sujo, barulhento, abandonado há décadas pelo poder público, esteticamente desagradável por conta dos viadutos e habitada por pessoas suspeitas que nos observam a cada minuto. Em um determinado momento, quase fomos assaltados, e isto só não aconteceu graças ao incrível jogo de cintura de quem nos acompanhava.
A contemplação das peças foi curta, fotografamos rápido, com pressa. Infelizmente, não conseguimos fotografar todas as pilastras pintadas, pois alguns momentos foram de muita tensão e precisávamos nos movimentar.
Eu estava trêmulo por entre as colunas de amor e gentileza. Perguntei se é possível viver e praticar a gentileza onde há tanto medo e desconfiança. O trabalho do Profeta, nesse sentido, é um monumental paradoxo: sua mensagem parece um contrassenso, uma incoerência para aquele lugar. Mais do que isso: seu trabalho é um desafio, uma afronta ao que está dado, uma tentativa de dizer que ainda há esperança, que algo é possível em meio a tanta desgraça, a tanto medo, a tantas trevas.

Que os futuros profetas voltem seus olhos para as famílias de Santa Maria.