“Partindo
do pressuposto de que a população da Guanabara chegaria aos oito milhões de
habitantes no ano 2000, o plano propôs a criação de bairros autônomos e a
implantação de uma rede de grandes vias de alta velocidade para articular os
diferentes núcleos. Essas vias seriam batizadas com o nome de cores – estava
plantado ali o germe das linhas Vermelha, Amarela e Lilás (que ficaria mais
conhecida como elevado da Perimetral).”
Livro
“Rio Científico: Inovação e Memória”, página 82.
A
escrita nasce da impossibilidade de falar. Não obstante, chegamos a um ponto
que precisei vomitar. Falei com o intuito de impedir a tragédia. Mas falar dói,
ainda mais falar sobre certas coisas muito íntimas.
Um
encontro inesperado. O triângulo mais improvável e pavoroso. Tropecei nas
palavras, nos bons modos, nas apresentações. Eu queria dizer tudo, queria ser
sádico, mostrar que, com alguém importante ao meu lado, ele não me intimidava
mais, não era nada além de um incômodo fantasma. Mas permaneci em silêncio,
tentando ser educado ao mesmo tempo em que ignorava a existência de quem eu
amava.
Evidentemente,
feri de morte quem amava. A noite terminara ali, por mais que tentássemos
reanimá-la. Tudo na verdade parecia ter terminado. Trancado no banheiro, não
querendo ouvir o que esperava ouvir. Com o corpo trêmulo, as lágrimas em
descontrole, consegui dizer:
“Não
quero que você me machuque como eles me machucaram.”
Por
favor, não me machuque com o que tem a dizer, não me machuque com o fim. Então
falei, com uma dificuldade dos diabos. Voltei no tempo, lembranças incômodas
afloraram. A verdade é que não posso me sentir burro, idiota, ignorado. Não
posso ser tratado assim. E se há alguma fixação é por alguém que de alguma
forma desperta esse mal, essa falha em mim. Não é amor, não pode ser.
Dei-me
conta de que tudo à minha volta, a decoração, os quadros, as músicas, a arte,
as bebidas, a história, o bom gosto... tudo era referência àquele fantasma.
Tudo parecia ser uma forma de querê-lo. Mas não. Era uma forma de não se sentir
menor que ele. É tudo uma questão de egocentrismo.
Mas
meu grande trabalho, meu trabalho original, minha maior obra de arte, foi se
apropriar de tudo isso. Tudo isso agora é meu, dei outros sentidos a todas
essas coisas. E agora as compartilho com outro alguém. Bethânia continua sendo
nossa diva e de ninguém mais. Quero que os fantasmas me deixem em paz.
De
todo modo, o que aconteceu foi injusto, desonesto... O que fiz e o que deixei
de fazer. Tudo poderia ter acontecido naturalmente, sem medos, sem penumbras,
sem mentiras. Mas eu escolhi o pior caminho. De certo modo, o que aconteceu não
deixou de envolver uma escolha. Mas ele me chamou de corajoso por ter contado
tudo, por ter me aberto a um nível que nunca esperei que chegaria. Sua
conclusão, depois de ouvir minha confissão, foi a mesma que durante muito tempo
venho repetindo. A reapropriação de minhas palavras nesse momento pareceu uma
piada involuntária de mau gosto e que, apesar disso, acatei como verdade:
“Você
precisa fazer análise.”
Às
sete horas da manhã do dia 24 de novembro de 2013, fomos contemplar a demolição
da Perimetral. Um ano depois de percorremos suas trevas em busca das memórias
do Profeta Gentileza. Um estouro ecoou pelo Porto, assustei-me. Vi apenas a
poeira tomando o ar. Parte do gigante de concreto, essa feiosa cicatriz no
rosto do Rio, não mais existia. Naquele momento, pedia a deus ou qualquer coisa
que nosso amor, caso desabasse daquela forma, que o fosse para algo mais belo e
mais forte.
“Your beauty is unstoppable
Your confidence unspeakable
I know you know, I know you
know
That I know that you know
I'm willing to do anything
To get attention from you,
dear
Even though I don't have
anything
That I could bargain with”
Where Dreams Go To
Die, John Grant.