sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A morte entre os dentes



O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
“Epitáfio”, Titãs.

No primeiro dia de outubro de 2014, às 19h, as peças do xadrez estavam postas. Nunca imaginamos que a qualquer momento podemos chegar tão perto daquilo que me pareceu ser apenas uma lasca, um centésimo, da experiência intensa, terrível e inominável da proximidade da morte.

Na cidade caótica e barulhenta, houve apenas silêncio quando a faca entrou serena, calma e indolor. A brutalidade pediu passagem de maneira muito natural; afinal, ela era uma criança. E eu que trabalho ajudando crianças... A violência circula afetando todos. A vida é irônica inclusive na morte. A mão foi ao peito e o sangue desceu.

I used to say
It's only me I'm hurting
But I saw you on the stairs
The kid was crying
And the dogs were howling
And a siren filled the air
“King of Everything”, Boy George.

Apesar das lembranças fragmentadas, lembro-me do céu naquela noite. Ficará para sempre em minha memória a visão das estrelas se apagando e o céu ficando pavorosamente escuro. A mulher ao lado chamava meu nome.

“Não posso acreditar que vou morrer assim.”

Eu não poderia imaginar, todavia, que naquele momento algo estava acontecendo. Ou melhor, coisas estavam acontecendo, aparentemente a esmo. Acasos que se encontraram, se interseccionaram, conspiraram a meu favor, garantindo minha sobrevivência. Diariamente, pergunto-me o que de fato aconteceu. Eu, tão cético e racional, admito que probabilidades demais não podem ser apenas probabilidades. Algo aconteceu. Algo agiu, algo fez. Muitos chamam de milagre, uma sequência de milagres. Não me atrevo a dar nomes.

Mas o pior estava por vir. Cheguei mais perto do fim quando não tinha consciência disso, na mesa de cirurgia. Acordei três dias depois e, nos dias e noites que se seguiram, no hiato que se abriu em minha vida, na pausa forçada de tudo, restava apenas pensar, refletir, elaborar. Foi o tempo para tentar entender o porquê de tanta velocidade, de tantas manhãs corridas, de tantos projetos inacabados, de tantos riscos e tantas palavras duras contra aqueles que amo. O prenúncio do fim trágico parecia permitir novos sentidos à vida. Mais uma vez, tendo a duvidar dos acasos e probabilidades.

“Você esteve com a morte nos seus dentes. Quem sou eu para te desejar força?”

Tratando-se ou não de acasos, até agora eles tem agido a meu favor. E apesar do medo e dos buracos a preencher – talvez isso leve uma vida inteira –, o sentimento que predomina é a gratidão. Gratidão a todos que estiveram presentes, que ajudaram, que intercederam e mesmo àqueles que permaneceram em silêncio, absorvendo o impacto da notícia. Gratidão àqueles que seguraram em minha mão e que posso com orgulho chamá-los de meus próximos. Gratidão pelo amor. Gratidão pela vida, em todo o seu mistério, e para além dela. Gratidão a algo que não sei bem o que é.

Tardei, tardei, tardei
Só na volta eu vi
Qual senda me levou
Qual me trouxe aqui
Pra encontrar você
Onde está meu lugar?
“Tardei”, Rodrigo Amarante.

A vida está pulsando outra vez.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Os misteriosos acasos de Shasta



O hálito deu a Shasta um pouco mais de confiança. Contou então que jamais conhecera pai e mãe, que fora criado por um pescador muito severo. Contou sobre como fugira, sobre os leões que os perseguiram, os perigos em Tashbaan, a noite entre os túmulos, as feras que uivavam no deserto, o calor e a sede durante a caminhada, e o outro leão que surgiu quando estavam quase chegando, Aravis ferida... Contou, por fim, que estava com fome, pois não comia nada havia muito tempo.
- Não acho que seja um desgraçado – disse a grande voz.
- Mas não foi falta de sorte ter encontrado tantos leões?
- Só há um leão – respondeu a voz.
- Não estou entendendo nada. Havia pelo menos dois naquela noite...
- Só há um leão, mas tem o pé ligeiro.
- Como sabe disso?
- Eu sou o leão.
Shasta escancarou a boca e não disse nada. A voz continuou:
- Fui eu o leão que o forçou a encontrar-se com Aravis. Fui eu o gato que o consolou na casa dos mortos. Fui eu o leão que espantou os chacais para que você dormisse. Fui eu o leão que assustou os cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o rei Luna. E fui eu o leão que empurrou para a praia a canoa em que você dormia, uma criança quase morta, para que um homem, acordado à meia-noite, o acolhesse.
- Então foi você que machucou Aravis?
- Fui eu.
- Mas por quê?!
- Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que lhe pertence.
- Quem é você?
- Eu mesmo – respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra estremeceu. E de novo: - Eu mesmo – com um murmúrio tão suave que mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse murmúrio agitava toda a folhagem à volta.

Trecho do romance “O cavalo e seu menino”, da série “As Crônicas de Nárnia”, de C. S. Lewis.