quinta-feira, 29 de maio de 2014

Firme

Suddenly
I'm not half the man I used to be
There's a shadow hanging over me
Oh, yesterday came suddenly
“Yesterday”, The Beatles.

Há uma sensação de frustração que corre junto com as horas. Ela está imbricada em cada minuto, degusta comigo o café das cinco e o lanche da madrugada. Ela quase não incomoda, de tão sutil e silenciosa. É uma companheira, tornou-se parte da rotina.
Ela está presente para me lembrar não apenas dos planos irrealizáveis e não realizados, mas também das agendas impossíveis, planejamentos desnecessários e desorganizações muito bem organizadas. Ela está apontando para o fato de que não estou caminhando. Está sempre sobre a mesa, aquela mesa inundada de papéis, moedas e livros virgens. A frustração é de uma virgindade eventualmente insuportável.
Enquanto isso, eu espero por um abraço. Espero também deixar de amar tudo que odeio.

And I’m holding on for dear life
Won’t look down won’t open my eyes
Keep my glass full until morning light
‘Cause I’m just holding on for tonight
“Chandelier”, Sia.


domingo, 4 de maio de 2014

Demolição



“Partindo do pressuposto de que a população da Guanabara chegaria aos oito milhões de habitantes no ano 2000, o plano propôs a criação de bairros autônomos e a implantação de uma rede de grandes vias de alta velocidade para articular os diferentes núcleos. Essas vias seriam batizadas com o nome de cores – estava plantado ali o germe das linhas Vermelha, Amarela e Lilás (que ficaria mais conhecida como elevado da Perimetral).”
Livro “Rio Científico: Inovação e Memória”, página 82.

A escrita nasce da impossibilidade de falar. Não obstante, chegamos a um ponto que precisei vomitar. Falei com o intuito de impedir a tragédia. Mas falar dói, ainda mais falar sobre certas coisas muito íntimas.
Um encontro inesperado. O triângulo mais improvável e pavoroso. Tropecei nas palavras, nos bons modos, nas apresentações. Eu queria dizer tudo, queria ser sádico, mostrar que, com alguém importante ao meu lado, ele não me intimidava mais, não era nada além de um incômodo fantasma. Mas permaneci em silêncio, tentando ser educado ao mesmo tempo em que ignorava a existência de quem eu amava.
Evidentemente, feri de morte quem amava. A noite terminara ali, por mais que tentássemos reanimá-la. Tudo na verdade parecia ter terminado. Trancado no banheiro, não querendo ouvir o que esperava ouvir. Com o corpo trêmulo, as lágrimas em descontrole, consegui dizer:

“Não quero que você me machuque como eles me machucaram.”

Por favor, não me machuque com o que tem a dizer, não me machuque com o fim. Então falei, com uma dificuldade dos diabos. Voltei no tempo, lembranças incômodas afloraram. A verdade é que não posso me sentir burro, idiota, ignorado. Não posso ser tratado assim. E se há alguma fixação é por alguém que de alguma forma desperta esse mal, essa falha em mim. Não é amor, não pode ser.
Dei-me conta de que tudo à minha volta, a decoração, os quadros, as músicas, a arte, as bebidas, a história, o bom gosto... tudo era referência àquele fantasma. Tudo parecia ser uma forma de querê-lo. Mas não. Era uma forma de não se sentir menor que ele. É tudo uma questão de egocentrismo.
Mas meu grande trabalho, meu trabalho original, minha maior obra de arte, foi se apropriar de tudo isso. Tudo isso agora é meu, dei outros sentidos a todas essas coisas. E agora as compartilho com outro alguém. Bethânia continua sendo nossa diva e de ninguém mais. Quero que os fantasmas me deixem em paz.
De todo modo, o que aconteceu foi injusto, desonesto... O que fiz e o que deixei de fazer. Tudo poderia ter acontecido naturalmente, sem medos, sem penumbras, sem mentiras. Mas eu escolhi o pior caminho. De certo modo, o que aconteceu não deixou de envolver uma escolha. Mas ele me chamou de corajoso por ter contado tudo, por ter me aberto a um nível que nunca esperei que chegaria. Sua conclusão, depois de ouvir minha confissão, foi a mesma que durante muito tempo venho repetindo. A reapropriação de minhas palavras nesse momento pareceu uma piada involuntária de mau gosto e que, apesar disso, acatei como verdade:

“Você precisa fazer análise.”

Às sete horas da manhã do dia 24 de novembro de 2013, fomos contemplar a demolição da Perimetral. Um ano depois de percorremos suas trevas em busca das memórias do Profeta Gentileza. Um estouro ecoou pelo Porto, assustei-me. Vi apenas a poeira tomando o ar. Parte do gigante de concreto, essa feiosa cicatriz no rosto do Rio, não mais existia. Naquele momento, pedia a deus ou qualquer coisa que nosso amor, caso desabasse daquela forma, que o fosse para algo mais belo e mais forte.

Your beauty is unstoppable
Your confidence unspeakable
I know you know, I know you know
That I know that you know
I'm willing to do anything
To get attention from you, dear
Even though I don't have anything
That I could bargain with”
Where Dreams Go To Die, John Grant.