sábado, 16 de fevereiro de 2013

O profeta que surgiu das chamas


Esse trabalho estava engavetado há um bom tempo, mas depois da tragédia de Santa Maria percebi que precisava divulgá-lo. O que aconteceu nessa cidade nos impactou e nos deixou sem palavras, o que talvez nos leve ao medo, à resignação ou à revolta insana. Mas as boas palavras vieram até mim, no momento certo. Alguém sabia que eu estava inquieto com tudo isso e, mesmo que não conseguisse me concentrar de início, tomado pelo horror, logo percebi que era preciso “elaborar o passado”. O segundo maior incêndio da história do país levou-me a recordar do primeiro e de seus desdobramentos.

Sim, é preciso voltar-se para o que ficou para trás e entender melhor o que ficou conosco. É preciso ter medo para ter coragem e seguir em frente. De uma tragédia como a de Santa Maria saem coisas ruins, mas também coisas boas. Sim, é difícil pensar em algo bom nesse momento de tanta dor, mas o fim pode ser o prenúncio de um novo início.

É nessa perspectiva que me volto para o Profeta Gentileza.

Gentileza e medo. Eu poderia escrever um texto falando sobre a experiência de criar meu próprio catálogo das obras urbanas do Profeta Gentileza, localizadas ao longo da Avenida Brasil, apontando a originalidade estética e a bela mensagem desse trabalho tão pouco conhecido. Todavia, falar da obra do Profeta e ignorar todo o contexto no qual ela se insere remete a uma diminuição de seu significado, à redução do potencial daquelas palavras pintadas.
Após a tragédia do Gran Circus Norte-Americano, em 1961, na qual mais de 500 pessoas morreram em um incêndio, o homem que seria conhecido como Profeta Gentileza teve uma ‘relevação’. Construiu uma casa com um grande jardim no local do incêndio, consolou os parentes das vítimas e saiu a pregar mensagens de paz e amor, além de escrevê-las nas pilastras dos viadutos que rasgam as ruas no entorno da Rodoviária, como Avenida Brasil e Rodrigues Alves.
Fato é que o acontecimento do circo marcou o Profeta: não por acaso, seu Livro Urbano, hoje considerado patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, começa no cemitério do Caju, no capítulo 55, com algumas mensagens breves escritas no início de um dos viadutos, e termina na Rodoviária Novo Rio, no capítulo 1. Parece uma referência à vida ressurgindo da morte, ressurreição, superação de algo terrível. O capítulo 1 é a celebração do movimento, da vida, da passagem. Sua grafia assume um estilo claramente circense, e referências à tragédia aparecem de modo muito sutil, vez e outra. E se num primeiro olhar as mensagens de Gentileza fazem um apelo a uma fé delirante, com mais cuidado notamos que a religião enquanto algo oficial, institucionalizado, é menos importante quando ele diz que “a igreja é o bom coração, o altar é o bom pensamento”.
Gentileza defende gentileza acima de tudo, mas esta é ameaçada pelo “capetalismo”. O Livro Urbano do Profeta parece um delírio interminável, envolvendo mensagens de amor, paz, religião, fé e demônios. Numa primeira leitura, parece não haver nenhum sentido. Seu trabalho, contudo, lembra o livro “Todos os cachorros são azuis”, de Rodrigo Souza Leão, que escreve uma sequência aparentemente desvairada de alucinações, delírios, crenças religiosas e eventos sobrenaturais. Mas há um sentido na loucura do autor, há um fio lógico, algo grandioso e firme entranhado na loucura, que só um olhar despretensioso consegue perceber. Talvez a loucura seja necessária para que algo grandioso aconteça... As mensagens do Profeta existiriam sem sua suposta loucura? A sensação ao ler o livro de Leão é semelhante àquela resultante da contemplação das pinturas do Profeta. Todavia, enquanto o primeiro fala do horror que envolve a loucura e a internação, no segundo, por entre suas letras circenses e códigos difíceis de decifrar, deparamo-nos com uma bela e forte mensagem de amor e senso comunitário.
Mas, como dito anteriormente, analisar as obras como se estas estivessem isoladas do mundo não é o suficiente. A região na qual elas se inserem está recheada de artes urbanas das mais variadas, com boa parte dialogando, homenageando e até questionando as mensagens do Profeta. Artistas urbanos que, embora anônimos, são reconhecidos através de seus personagens e imagens espalhados por toda a cidade. Mas isso é pouco para dar uma ideia do entorno: as pinturas do Profeta se encontram num lugar assustador e perigoso. Um lugar sujo, barulhento, abandonado há décadas pelo poder público, esteticamente desagradável por conta dos viadutos e habitada por pessoas suspeitas que nos observam a cada minuto. Em um determinado momento, quase fomos assaltados, e isto só não aconteceu graças ao incrível jogo de cintura de quem nos acompanhava.
A contemplação das peças foi curta, fotografamos rápido, com pressa. Infelizmente, não conseguimos fotografar todas as pilastras pintadas, pois alguns momentos foram de muita tensão e precisávamos nos movimentar.
Eu estava trêmulo por entre as colunas de amor e gentileza. Perguntei se é possível viver e praticar a gentileza onde há tanto medo e desconfiança. O trabalho do Profeta, nesse sentido, é um monumental paradoxo: sua mensagem parece um contrassenso, uma incoerência para aquele lugar. Mais do que isso: seu trabalho é um desafio, uma afronta ao que está dado, uma tentativa de dizer que ainda há esperança, que algo é possível em meio a tanta desgraça, a tanto medo, a tantas trevas.

Que os futuros profetas voltem seus olhos para as famílias de Santa Maria.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Todo carnaval tem seu início


Todo dia um ninguém José acorda já deitado
Todo dia ainda de pé o Zé dorme acordado
Todo dia o dia não quer raiar o sol do dia
Toda trilha é andada com a fé de quem crê no ditado
De que o dia insiste em nascer
Mas o dia insiste em nascer
Pra ver deitar o novo

Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada
Toda Bossa é nova e você não liga se é usada
Todo carnaval tem seu fim
Todo carnaval tem seu fim
E é o fim, e é o fim

Deixa eu brincar de ser feliz
Deixa eu pintar o meu nariz

“Todo carnaval tem seu fim”, Los Hermanos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O disparo de Siba


Um verso preso é um tiro
Que a arma não disparou
Pois o gatilho travou
E o tambor não deu o giro
Se escuta só o suspiro
De alguém que escapa assombrado
E o atirador, frustrado
Remóe a raiva no dente
Sentindo o mesmo que sente
Alguém que foi baleado

“Um verso preso”, Siba.