sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Lamento em São Bernardo

De longe em longe, sento-me fadigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
-- Estraguei minha vida, estraguei-a estupidamente.
A agitação diminui.
-- Estraguei a minha vida estupidamente.
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
(...)
Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
(...)
É horrível! Se aparecesse alguém... estão todos dormindo.
(...)
E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que horas, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.

“São Bernardo”, de Graciliano Ramos.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Sequência poética

reverso ou não, a poesia e os garfos se colocam
quando por palavras necessitamos de tudo.
quando tudo nos falta
quando tudo nos detém
em instante tudo nos retém.
instável, todo amor que nunca há.
quando todo mar,
então a poesia nos coloca a todos sem palavras e
sem história literária,
sem amor e sem elaboração formal, sem sexo nas
manhãs.
absolutamente sem elaboração de alguma forma.
a poesia nunca terá forma como o que se leva do
sexo jamais é uma forma.
como o que se vive em amor não tem forma.
a poesia é sempre em quando impreciso mas
totalmente necessário.
e assim nunca se toca.

“a sequência de todos os passos”, de Alexandre Moraes.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

As cartas de Bethânia


Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras, ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso cartas de amor ridículas.
Afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor,
É que são ridículas.

Porém não tive coragem de abrir a mensagem
Porque, na incerteza, eu meditava
Dizia: “será de alegria, será de tristeza?”
Quanta verdade tristonha
Ou mentira risonha uma carta nos traz
E assim pensando, rasguei sua carta e queimei
Para não sofrer mais

Quanto a mim o amor passou
Eu só lhe peço que não faça como gente vulgar
E não me volte a cara quando passa por si
Nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor
Fiquemos um perante o outro
Como dois conhecidos desde a infância
Que se amaram um pouco quando meninos
Embora na vida adulta sigam outras afeições
Conserva-nos, caminho da alma, a memória de seu amor antigo e inútil.

“Cartas de amor”, de Maria Bethânia.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Permanecendo II


Hoje desejei como nunca jogar seu presente fora. Nunca teve muita utilidade, mas sabia que isso não faria diferença alguma, eu não esqueceria. Significaria apenas um ato simbólico, que mascararia a realidade, colocaria um véu sobre aquilo que não se deu.

“Um amor assim delicado
Você pega e despreza
Não devia ter despertado
Ajoelha e não reza”
“Queixa”, Caetano Veloso.

Desculpe, estou triste e entediado, sem vontade para nada. Como é possível não querer mais ver quem você mais quer ver? Aquela foto me deixou tão chateado. Você não precisa de mim, nunca precisou. Mas eu preciso imensamente de você.
Será que você conta as mesmas histórias para ele? Será que se faz de tímido para conseguir o que quer? Com certeza ele é bem melhor do que eu; caso contrário, a história não seria essa. Eu não estaria aqui, imóvel, observando e retorcendo a ferida.

“Baby, you're where dreams go to die
I regret the day your lovely carcass caught my eye
Baby, you're where dreams go to die
I've gotta to get away
I don't want to
But I have to try, oh baby”
“Where Dreams Go To Die”, John Grant.

Já sei o que o mundo tem a dizer a respeito. Você precisa se valorizar mais, blá blá blá. Todavia, mesmo cobrindo-me de ouro, ficará sempre aquela tristeza de um carinho não correspondido, ficará sempre aquela pergunta, “onde foi que errei?”. Permanecerá o prazer não realizado, a vontade abandonada, alguma coisa que nem existiu e já foi rejeitada, talvez por algo melhor.
Quero acabar com isso, quero acabar com tudo. E não quero parecer vulgar. Por isso fico aqui, em silêncio, tentando não incomodar, não querendo ver, mas vendo, e pensando em respirar outros ares, conhecer gente, deixar o tempo passar e torcer para não morrer enquanto isso tudo se vai.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O amor segundo Érico Veríssimo


Clarissa fecha a porta.
Melhor não acender a luz, para não quebrar o encantamento. Vai até a janela. A lua cheia sobre Jacarecanga. A rua quieta. Uma corneta tocando longe, num quartel. A presença silenciosa das estrelas. Cachorros uivando. Gatos cantando.
Oh! A noite enorme. E o silêncio fundo que de quando em quando se faz quando os galos e os cachorros se calam, quando todas as vozes morrem, quando nenhuma folha se move.
Clarissa encosta a cabeça na vidraça e fica olhando a rua.
Aos poucos vai percebendo um sonido, leve, leve, fugidio, fluído como o luar. Ilusão? Sim, deve ser ilusão. Mas não, agora de novo vêm até seus ouvidos os mesmos sons doces, que se apagam e acendem como as estrelas. Deve ser uma serenata. Clarissa escuta...
Lá na esquina surge um vulto familiar. O coração de Clarissa começa a bater, a bater, a bater com mais força, na expectativa dum grande acontecimento. O vulto se aproxima, vem vindo devagar na direção da casa dos Albuquerques, vem crescendo, vem se definindo. Não há mais dúvida. É ele. O Gato Orgulhoso, o gato selvagem que anda sozinho por todos os caminhos da terra, sem lei, sem amigos, sem rumo. Daqui a poucos instantes ele passará sob a janela.
(...)
A serenata continua, distante... Música ao longe...
De repente Clarissa tem a grande revelação. Encolhe-se transida, contente e ao mesmo tempo aflita, vendo pela primeira vez com clareza o que apenas vislumbrava duma maneira vaga, apagada, tímida.
A serenata dissolve-se na noite. Funde-se com o luar.
Mas o vulto familiar vai crescendo. Já se ouve o ruído de seus passos. Vasco se aproxima da janela, pára, ergue a cabeça.
– Alô Clarissa!
Ela sorri, baixa os olhos, quer dizer alguma coisa mas não consegue falar.

“Música ao longe”, de Érico Veríssimo.