quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

As portas de Cromañon



As portas estavam fechadas para mim, mas agora estão se abrindo. É difícil sair do inferno e passar pelas portas entreabertas. Mas o destino, o acaso, ou sabe-se lá o nome que se deve dar, sempre nos pega de surpresa. É preciso atenção, é preciso cuidado, é preciso delicadeza para perceber os movimentos e as formas que o destino toma. As linhas do acaso podem operar a nosso favor, não sei como e nem estou seguro disso.
Na bela e antiga igreja, sento-me e pergunto às forças se elas me entendem, se elas pensam, se há um sentido em tudo isso. Depois de tudo que passei, pensei que me tornaria um ser humano melhor, mas agora só há lástima e pesar... Há uma tensão, uma melancolia que acompanha meus passos pela cidade pretensamente europeia. Silêncio entre os santos e heróis argentinos. Resta-me pedir por sabedoria. Eu desejo sabedoria para poder viver com mais leveza.
Não há amor em Buenos Aires, nem dinheiro, nem glamour. Caminhando, sentindo as cicatrizes doerem, passo por uma manifestação: Dez anos de Cromañon, tragédia na qual mais de 190 jovens morreram em um incêndio durante um show de rock. Abraços e lágrimas por toda parte. Era como reviver Santa Maria dez anos depois. São precisos dez anos para reelaborar uma tragédia, uma experiência de perda ou de quase morte. Arte, dança, música, política e revolta. O tempo permite ressignificar a dor que, não obstante, nunca deixará de ser dor. A dor cria coisas novas, produz caminhos possíveis. É possível sair das trevas. Os profetas sempre vêm.

“Porque ser sobreviviente es convivir com un duelo propio, es seguir en el día a día con un silencioso abismo que tiene como epicentro el instante mismo de la tragedia.” Exposição de Fotografia “La Propia Ausencia”, de Ignacio Coló.

“Las puertas están cerradas”, dizia a letra da música. Não, as portas estão se abrindo. Já é possível ver a luz lá fora.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Por merecer

I fucked up
I made a mistake
Nobody does it better than myself
I'm sorry
I'm not afraid to say
I wish I could take it back but I can't
“I fucked up”, Madonna.

Há certos amores que de tão belos são impossíveis. Embora reais, são impossíveis porque não são amores merecidos. Por mais que se tente, é difícil fazer por merecer. É difícil estar à altura.
Provar o merecimento é um trabalho árduo e silencioso. Não se dá por meio de palavras, que, por mais bem intencionadas que sejam, doem na pronúncia. Há uma dor que permanece, uma dúvida, um medo de que a qualquer momento as trevas se ocupem de tudo outra vez. Se o amor é raro, aquele por merecer é ainda mais.
Quando maculamos o amor, temos a convicção de que não o merecemos mesmo que ele tenha nos escolhido. Passamos os dias em tensão, pensando em como melhorar a situação, como florear o caminho, até desejarmos não ter amor nenhum. Talvez a vida seja mais tranquila sem amor. Talvez seja melhor viver com quaisquer amores; seria uma vida rasa e limitada, mas sem nudez, sem lágrimas, sem vômitos, sem avalanches.
Em certas situações, o melhor a se fazer é desejar que o amor não merecido seja entregue para outro que realmente o mereça. O amor é tão bom que é de sua própria natureza perder-se.

Mas há momentos críticos em nossas vidas que nos fazem crer que não podemos abrir mão nem mesmo daquilo que não merecemos, daquilo que não somos dignos de possuir. É preciso pagar um preço para obter esse estranho direito, é preciso sofrer mais um golpe fatal.

Talvez nem a morte nos torne dignos de alguma coisa.

Porque meus olhos fechei
E sem rancor perdoei
Os seus crimes de amor
“Barulho”, Maria Bethânia.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O outro menino que sobreviveu



Dumbledore e Profa. Minerva curvaram-se para o embrulho de cobertores. Dentro, apenas visível, havia um menino, que dormia a sono solto. Sob uma mecha de cabelos muito negros caída sobre a testa eles viram um corte curioso, tinha a forma de um raio.
- Foi aí que...? – sussurrou a professora.
- Foi – confirmou Dumbledore. – Ficará com a cicatriz para sempre.
- Será que você não poderia dar um jeito, Dumbledore? Mesmo que pudesse, eu não o faria. As cicatrizes podem vir a ser úteis. Tenho uma acima do joelho esquerdo que é um mapa perfeito do metrô de Londres. Bem, me dê ele aqui, Hagrid, é melhor acabarmos logo com isso. 
 
Trecho do livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, de J. K. Rowling.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O que Lúcia nunca saberia



O Leão fitou-a bem nos olhos.
- Oh, Aslam, acha que eu errei? Como é que eu... podia deixar os outros e vir sozinha encontrar-me com você? Não olhe para mim desse jeito... bem... de fato... talvez eu pudesse. Sei que com você não estaria sozinha. Mas ia adiantar alguma coisa?
Aslam não respondeu.
- Mesmo assim teria sido melhor? - perguntou Lúcia, com a voz sumida. - Mas como? Aslam, por favor, diga-me.
- Dizer o que teria acontecido? Não, a ninguém jamais se diz isso.

Trecho do livro "Príncipe Caspian", da série "As Crônicas de Nárnia", de C. S. Lewis.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A morte entre os dentes



O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
“Epitáfio”, Titãs.

No primeiro dia de outubro de 2014, às 19h, as peças do xadrez estavam postas. Nunca imaginamos que a qualquer momento podemos chegar tão perto daquilo que me pareceu ser apenas uma lasca, um centésimo, da experiência intensa, terrível e inominável da proximidade da morte.

Na cidade caótica e barulhenta, houve apenas silêncio quando a faca entrou serena, calma e indolor. A brutalidade pediu passagem de maneira muito natural; afinal, ela era uma criança. E eu que trabalho ajudando crianças... A violência circula afetando todos. A vida é irônica inclusive na morte. A mão foi ao peito e o sangue desceu.

I used to say
It's only me I'm hurting
But I saw you on the stairs
The kid was crying
And the dogs were howling
And a siren filled the air
“King of Everything”, Boy George.

Apesar das lembranças fragmentadas, lembro-me do céu naquela noite. Ficará para sempre em minha memória a visão das estrelas se apagando e o céu ficando pavorosamente escuro. A mulher ao lado chamava meu nome.

“Não posso acreditar que vou morrer assim.”

Eu não poderia imaginar, todavia, que naquele momento algo estava acontecendo. Ou melhor, coisas estavam acontecendo, aparentemente a esmo. Acasos que se encontraram, se interseccionaram, conspiraram a meu favor, garantindo minha sobrevivência. Diariamente, pergunto-me o que de fato aconteceu. Eu, tão cético e racional, admito que probabilidades demais não podem ser apenas probabilidades. Algo aconteceu. Algo agiu, algo fez. Muitos chamam de milagre, uma sequência de milagres. Não me atrevo a dar nomes.

Mas o pior estava por vir. Cheguei mais perto do fim quando não tinha consciência disso, na mesa de cirurgia. Acordei três dias depois e, nos dias e noites que se seguiram, no hiato que se abriu em minha vida, na pausa forçada de tudo, restava apenas pensar, refletir, elaborar. Foi o tempo para tentar entender o porquê de tanta velocidade, de tantas manhãs corridas, de tantos projetos inacabados, de tantos riscos e tantas palavras duras contra aqueles que amo. O prenúncio do fim trágico parecia permitir novos sentidos à vida. Mais uma vez, tendo a duvidar dos acasos e probabilidades.

“Você esteve com a morte nos seus dentes. Quem sou eu para te desejar força?”

Tratando-se ou não de acasos, até agora eles tem agido a meu favor. E apesar do medo e dos buracos a preencher – talvez isso leve uma vida inteira –, o sentimento que predomina é a gratidão. Gratidão a todos que estiveram presentes, que ajudaram, que intercederam e mesmo àqueles que permaneceram em silêncio, absorvendo o impacto da notícia. Gratidão àqueles que seguraram em minha mão e que posso com orgulho chamá-los de meus próximos. Gratidão pelo amor. Gratidão pela vida, em todo o seu mistério, e para além dela. Gratidão a algo que não sei bem o que é.

Tardei, tardei, tardei
Só na volta eu vi
Qual senda me levou
Qual me trouxe aqui
Pra encontrar você
Onde está meu lugar?
“Tardei”, Rodrigo Amarante.

A vida está pulsando outra vez.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Os misteriosos acasos de Shasta



O hálito deu a Shasta um pouco mais de confiança. Contou então que jamais conhecera pai e mãe, que fora criado por um pescador muito severo. Contou sobre como fugira, sobre os leões que os perseguiram, os perigos em Tashbaan, a noite entre os túmulos, as feras que uivavam no deserto, o calor e a sede durante a caminhada, e o outro leão que surgiu quando estavam quase chegando, Aravis ferida... Contou, por fim, que estava com fome, pois não comia nada havia muito tempo.
- Não acho que seja um desgraçado – disse a grande voz.
- Mas não foi falta de sorte ter encontrado tantos leões?
- Só há um leão – respondeu a voz.
- Não estou entendendo nada. Havia pelo menos dois naquela noite...
- Só há um leão, mas tem o pé ligeiro.
- Como sabe disso?
- Eu sou o leão.
Shasta escancarou a boca e não disse nada. A voz continuou:
- Fui eu o leão que o forçou a encontrar-se com Aravis. Fui eu o gato que o consolou na casa dos mortos. Fui eu o leão que espantou os chacais para que você dormisse. Fui eu o leão que assustou os cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o rei Luna. E fui eu o leão que empurrou para a praia a canoa em que você dormia, uma criança quase morta, para que um homem, acordado à meia-noite, o acolhesse.
- Então foi você que machucou Aravis?
- Fui eu.
- Mas por quê?!
- Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que lhe pertence.
- Quem é você?
- Eu mesmo – respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra estremeceu. E de novo: - Eu mesmo – com um murmúrio tão suave que mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse murmúrio agitava toda a folhagem à volta.

Trecho do romance “O cavalo e seu menino”, da série “As Crônicas de Nárnia”, de C. S. Lewis.