sábado, 31 de março de 2012

Uma noite no Cine Ideal

Para aqueles que apreciam uma noite trash, o Cine Ideal é uma ótima opção. Não digo trash num sentido pejorativo, ao contrário; tudo que é humano tem algo de trash. Nesse sentido, aquele lugar compõe um verdadeiro circo de humanidades.

Mas não escrevo para elogiar a trashidade do Cine Ideal. Mas sim para relatar algumas observações que fiz em minha última empreitada. Às vezes é preciso calar-se para ouvir, mas agora é minha vez de falar.

À porta da boate, esperando uma amiga para entrar, sem querer começo a ouvir uma conversa de dois homens com um funcionário (ou o empresário da casa, não sei, tinha muita prepotência para ser um simples funcionário). Branco, aparência de uns quarenta e poucos anos, a conhecida camisa preta da casa, a calvície se insinuando, a barba. Um homem aparentemente comum. Ao contrário de mim, que considero o exótico como algo positivo, ele lamentava a diversidade que sua casa abrigava. Um dos homens começou a criticar a postura das “bichinhas, aquelas que usam calça apertada”. Nosso personagem principal acrescentou: “Quando toca Lady Gaga ou Beyoncé, são elas que fazem a coreografia, levando a perna aqui em cima.” A conversa despertou minha atenção, pois estava ouvindo pela primeira vez o ponto de vista de quem é de dentro e não de fora. Nosso personagem continuou: “É por isso que tem gente querendo bater em viado. Das 400 pessoas que vêm aqui e saem no álbum do Facebook, só umas 20 são bonitas.” Ora veja... Mas não parou por aí. Logo ele fez questão de acrescentar, confirmando a velha hipocrisia homofóbica: “Não tenho nada contra isso, sabe... Cada um com seu cada um, todo mundo tem liberdade de fazer o que quer...” Contudo, nosso personagem continuou depreciando a imagem “delas” e, enquanto isso, olho para a travesti do Cine Ideal, recebendo educadamente as ‘bichinhas de calça apertada’ que provavelmente estavam enchendo o rabo do nosso personagem de dinheiro.

É interessante o fato de que ele se referia às “bichinhas” no pronome feminino, explicitando, mais do que sua homofobia, a sua misoginia ao depreciar e ridicularizar tudo que se apresente ou se insinue feminino.

Lembre-se, caro leitor, de que minha noite sequer começara. Minha amiga chegou, entramos, bebemos, rimos, fomos até o chão. Logo percebo a presença flutuante do nosso amigo, dessa vez sem uniforme. Vestia uma camisa polo branca com listras azuis. Um copo de cerveja na mão, andando pra lá e pra cá, olhando para todos os lados. Não estava mais trabalhando, estava caçando. E ao longo da noite eu o vi em diferentes lugares da casa, sempre à espreita, como um velho aposentado, cansado e ao mesmo tempo animado com aquela noite insana. Mas ele conhecia a casa como ninguém, é verdade. Em cada canto que ele se alojava, seus olhos percorriam o lugar, feito águia procurando sua presa. No último momento que o vi, antes de ir embora, ele estava perto do DJ, conversando com um dos amigos do início deste relato. Com aquele aparelho de luz na mão (não sei o nome daquela porcaria que tanto incomoda os clientes), ele apontou para sua presa, que lhe deu o sinal. Um rapaz a alguns metros. O homem da camisa polo, outrora representante da casa e agora uma peça do jogo, se aproxima e ataca sua presa. E fim. Diz algo do tipo “vou voltar, hein” e volta para seu lugar, enquanto outra funcionária, rindo, faz um sinal para ele, dizendo que está vendo tudo.

Muitas conclusões podem ser tiradas desse episódio. A primeira é que a homofobia está em todos os lugares, sendo praticada por todas as pessoas. Os espaços de sociabilidade gay estão longe de serem paraísos de igualdade e respeito; muito pelo contrário, são lugares onde determinadas expressões de ódio circulam livremente. Mas a homofobia, com seu fundamento misógino, seleciona pessoas, não atingindo a todos. Ela é usada por alguns contra alguns. Vide o caso do nosso personagem.

Mas pessoas que visam ganhar dinheiro de minorias não estão preocupadas com isso. Basta pegar um cinema velho, realizar alguns ajustes e pronto, enfiem a bicharada (pobre) aí dentro. Mas atentemos para o fato de que, no Cine Ideal, a homofobia está disseminada em todos os cantos da casa, implícita nos atos mais sutis.

Práticas de exclusão em toda parte. O que diferencia um desejo masculino de um desejo feminino, se ambos são apenas desejo? O que garante a legitimidade de um desejo e não de outro? O que garante a legitimidade de um modo de se comportar e não de outro? Mais do que isso, por que se deve existir de um modo e não de outro?

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