quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O amor segundo Érico Veríssimo


Clarissa fecha a porta.
Melhor não acender a luz, para não quebrar o encantamento. Vai até a janela. A lua cheia sobre Jacarecanga. A rua quieta. Uma corneta tocando longe, num quartel. A presença silenciosa das estrelas. Cachorros uivando. Gatos cantando.
Oh! A noite enorme. E o silêncio fundo que de quando em quando se faz quando os galos e os cachorros se calam, quando todas as vozes morrem, quando nenhuma folha se move.
Clarissa encosta a cabeça na vidraça e fica olhando a rua.
Aos poucos vai percebendo um sonido, leve, leve, fugidio, fluído como o luar. Ilusão? Sim, deve ser ilusão. Mas não, agora de novo vêm até seus ouvidos os mesmos sons doces, que se apagam e acendem como as estrelas. Deve ser uma serenata. Clarissa escuta...
Lá na esquina surge um vulto familiar. O coração de Clarissa começa a bater, a bater, a bater com mais força, na expectativa dum grande acontecimento. O vulto se aproxima, vem vindo devagar na direção da casa dos Albuquerques, vem crescendo, vem se definindo. Não há mais dúvida. É ele. O Gato Orgulhoso, o gato selvagem que anda sozinho por todos os caminhos da terra, sem lei, sem amigos, sem rumo. Daqui a poucos instantes ele passará sob a janela.
(...)
A serenata continua, distante... Música ao longe...
De repente Clarissa tem a grande revelação. Encolhe-se transida, contente e ao mesmo tempo aflita, vendo pela primeira vez com clareza o que apenas vislumbrava duma maneira vaga, apagada, tímida.
A serenata dissolve-se na noite. Funde-se com o luar.
Mas o vulto familiar vai crescendo. Já se ouve o ruído de seus passos. Vasco se aproxima da janela, pára, ergue a cabeça.
– Alô Clarissa!
Ela sorri, baixa os olhos, quer dizer alguma coisa mas não consegue falar.

“Música ao longe”, de Érico Veríssimo.

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