sábado, 4 de junho de 2011

Fé e obras


“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Evangelho Segundo Mateus, 19:19.

“O cristianismo morreu na cruz.” Nietzsche, em “O Anticristo”.

Acredito que, se alguém lê esse blog não muito atraente, deve ter em algum momento percebido minha implicância com certa religião, a saber, o cristianismo. Talvez seja verdade que meu olhar, hoje, esteja por demais contaminado por minha dolorida vivência no modo predominante de professar a fé cristã. Mas é inegável o papel da religião na constituição das subjetividades, na história do mundo. Se esse papel é indispensável ou não, isso é outra questão. O que quero pontuar aqui é que, assim como sua importância é inegável, também o é o sangue – seja simbólico, seja real – diariamente derramado pela religião cristã.

Há alguns dias, manifestei-me contra um ponto de vista que era, a meu ver, declaradamente preconceituoso e discriminatório. Tratava-se de uma crítica ao chamado “kit anti-homofobia”. Entre os argumentos apresentados, o kit seria uma afronta às famílias, um desrespeito às crianças que teriam sua sexualidade “discutida” e que era um direito dos pais ensinarem aos filhos que o “certo é ser hétero”. O tal kit, ao invés disso, é apenas uma tentativa de trazer à discussão um assunto do qual não se fala nas escolas, mas que gera exclusão e violência. Uma tentativa de mudar formas preconceituosas de pensar, de tirar a homossexualidade desse véu de estranheza/anormalidade/imoralidade que a história a revestiu.
Mas, como era esperado, ao apresentar um ponto de vista dissonante de uma lógica fundamentada numa irracional racionalidade religiosa, os argumentos que se seguiram foram todos discriminatórios, porém num tom assumidamente religioso, ‘cristão’. Até me deparar, então, com a pérola – que já é bastante conhecida – “amamos o homossexual, mas não o homossexualismo”. Frase tão perversa quanto aquelas de ódio explícito, pois ambas levam a um mesmo fim: diferenciação e discriminação. Ficou implícito, porém evidente para mim, que a homofobia é vista como liberdade de expressão, uma liberdade que é fundamentada e legitimada pela bíblia.
Pois bem, a justificativa para tamanha insensatez é bíblica. Assim como muitas outras. Eu posso usar a bíblia para defender o racismo, posso usá-la para defender o anti-semitismo, a violência contra a mulher e crianças. Posso usar a bíblia para defender a escravidão. Aliás, ela já foi usada para tudo isso. Ela tem referências, justificativas e defesas para tudo isso. Dependendo do contexto histórico, econômico, social e cultural no qual se insere, dependendo da leitura feita dos textos ditos sagrados, dependendo dos interesses envolvidos em seu uso, a bíblia pode – como pôde – ser utilizada para variados fins. Hitler usou a bíblia para perseguir judeus. Padres usaram a bíblia para orientar escravos a serem obedientes. E bispo Macedo usa a bíblia para ganhar dinheiro; afinal, ela também é bastante útil para um cristianismo neoliberal.
O maior problema da religião – e talvez esse problema seja a razão de sua existência – é tentar congelar, enrijecer, naturalizar aquilo que é contingente e, portanto, mutável. A ‘palavra de deus’ inteira, do antigo ao novo testamento, é clara em relação à escravidão. As referências à homossexualidade não chegam a dez versículos, controversos e sujeitos a variadas interpretações (há linhas de interpretação, por exemplo, que defendem que a bíblia não condena a homossexualidade). Mas por que uma coisa foi revista e hoje é simplesmente ignorada nas atuais leituras da bíblia – e muitas vezes submetida a metáforas forçadas – e outra não? A resposta não está na bíblia, não está no seio da igreja: a resposta está num tabu da sexualidade, no entendimento que persiste da homossexualidade enquanto desvio/imoralidade. Além do desenvolvimento do capitalismo, para o qual parecia ser desinteressante manter a escravidão, houve movimentos fortes a favor da defesa dos direitos humanos em todo o mundo, o que levou a igreja cristã a reconsiderar seus princípios e valores, sua visão do material e do imaterial; enfim, o cristianismo precisou se repensar. O mesmo, hoje, está acontecendo em relação ao entendimento da sexualidade humana. Acredito que apenas alguns séculos serão necessários para que a igreja cristã reconsidere o entendimento que tem a respeito da homossexualidade e, por exemplo, volte – isso mesmo, “volte” – a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Diante dessa argumentação, fui criticado por supostamente querer me colocar no lugar de vítima. É curiosa essa tendência em individualizar a questão, em não perceber o problema de um sistema inteiro, mas de apontar e até inventar o problema daquele que não se adéqua. Não se trata de eleger vítimas, menos ainda de me auto-eleger vítima. Não acredito na pura dicotomia agressor X vítima. Eu acredito na constante atualização de discursos e práticas que vitimizam. Discursos e práticas que diferenciam, que segregam, que discriminam. No caso do cristianismo, fé e obras que fazem sangrar.

Tocar nesse assunto, eu sei, é tocar numa das feridas mais doloridas da história do cristianismo. É fazer doer uma fé compartilhada por muitos. E muitos próximos, muitos queridos. Porém, como dissera a uma amiga, não me silenciarei diante de crueldades revestidas de amor. Não me calarei quando a dignidade de algumas pessoas for desrespeitada, mesmo que à custa de amizades.
Eu não defendo o fim do cristianismo, embora ache que o atual, muito longe de ser um cristianismo genuíno, faria um bem a todos nós se fosse para outro planeta. Como disse Nietzsche, o verdadeiro cristianismo morreu na cruz. Eu acrescentaria que ele morreu e não ressuscitou no terceiro dia.

Um comentário:

  1. O verdadeiro cristianismo ressuscita quando eu mesmo procuro vivê-lo, apesar de toda hipocrisia daqueles que se consideram "donos da Bíblia". Na verdade, todos eles só me ajudam a compreender como não devo me comportar. Livre da influência deles, posso encontrar Jesus vivo e experimentar o seu amor.

    Abraço!

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