sábado, 25 de junho de 2011

Psicose acadêmica


Há alguns dias, correu pelos corredores da faculdade a notícia sobre certa aula de psicanálise, que teria suscitado discussões a respeito da transexualidade, considerada uma psicose pela professora.
Segundo o que chegou aos meus ouvidos, ela apontou que a psicose envolve alterações na percepção e sensação do corpo, e que a transexual, ao se sentir do sexo oposto, apresentava uma realidade outra a respeito do seu corpo, um delírio, no qual ela teria a convicção de pertencer a outro sexo, apesar da evidência genital. Para reforçar seu argumento, criou o seguinte exemplo: um paciente psicótico acredita que é uma borboleta. Por mais que apontemos as evidências contrárias, o psicótico continuará acreditando fielmente em seu delírio. Da mesma forma, a pessoa transexual acredita que é do sexo oposto. Defendeu a importância do acompanhamento terapêutico antes da cirurgia de transgenitalização, que dura dois anos, e afirmou que muitas transexuais, depois da cirurgia, “surtam”.
Já escrevi aqui sobre a dificuldade em perceber as bobagens ditas por alguns professores justamente porque eles são professores. Ao assumirem uma posição de poder, eles se tornam inquestionáveis no que dizem. Não nos damos conta disso e qualquer coisa que seja proferida por eles ganha automaticamente status de verdade. Não questiono sua posição de poder-saber, como se eles não estivessem num lugar que é legitimamente deles. Eu questiono nosso silêncio diante disso.
Confesso com humildade que meu conhecimento em Psicanálise é medíocre. Se quisesse questionar essa hipótese a respeito da transexualidade dentro da teoria psicanalítica, eu não conseguiria sair do lugar. Contudo, acredito que a Psicologia, como qualquer outra ciência, não pode se desvincular da experiência, da vivência do campo e da história crítica. A Psicologia, com suas diferentes linhas e teorias, não pode se construir dentro de um castelo acadêmico isolado do mundo, criando sua própria realidade (isso sim é uma verdadeira ‘psicose acadêmica’). É preciso se envolver com o objeto, fazê-lo falar, e não se distanciar e elaborar lindas teorias com reconhecida validade teórica, mas que são um fracasso em termos de validade empírica.
Um quadro psicótico se caracteriza, entre outras coisas, por uma perda de contato com a realidade. Uma pessoa que crê ser uma borboleta acredita que é uma borboleta e pronto. Ela não se convence com as provas ao contrário. Ela não sofre diante das evidências, diferentemente da transexual. Fazer essa comparação – de uma pessoa que acha que é uma borboleta com uma pessoa transexual – revela o desconhecimento daquilo que de fato é a experiência da transexualidade. A transexual não acredita que é de outro sexo, ela sente-se de outro sexo. A mulher transexual, por exemplo, sabe que biologicamente é um homem, mas sente-se uma mulher. E sofre com isso. Ela não perde o contato com a realidade, muito pelo contrário: seu sofrimento é a prova de que ela percebe e reconhece a realidade. Nesse sentido, a transexual não nega seu corpo.
Sim, mas há os vários casos de transexuais que, não dando real importância ao acompanhamento psicológico obrigatório, surtam depois da cirurgia, por não estarem ‘prontas’ para uma mudança tão radical. Mais uma vez, a bela teoria dada em aula não levou em conta a experiência das próprias transexuais, suas vozes, sua opinião, além dos estudos sobre o assunto. O acompanhamento é obrigatório, o que já é uma contradição, uma vez que a demanda é – ou deveria ser – voluntária. Ao ser obrigatório, o acompanhamento se torna uma avaliação. A transexual precisa ser ‘aprovada’ para fazer a cirurgia. Ela começa então a mentir, a dizer apenas aquilo que favorecerá sua ‘aprovação’. Mente a um ponto em que ela própria começa a acreditar em suas mentiras. Ela engana a si mesma, achando que está – e pode não estar, há casos e casos – pronta para a mudança de sexo. O acompanhamento, portanto, é um ponto muito controverso, que precisa ser repensado, colocado em questão, e não ser apenas imposto para depois alguém dizer que, se a transexual surtou, é porque o tratamento não foi ‘bem conduzido’.
Como se pode ver, não tenho a pretensão – e nem a capacidade – de formular uma teoria a respeito da transexualidade. Apenas trouxe alguns pontos já apresentados em eventos sobre transexualidade que visitei, ao ler sobre e ao conversar com transexuais. Isso é fundamental para tentar compreender a transexualidade. Parece-me óbvio e redundante, mas parece que para algumas pessoas não é. Não adianta tentar abrir a caixa de ferramentas e escolher a esmo algumas peças que pareçam encaixar no objeto de modo satisfatório. É preciso mais do que isso. Mas agora, eu pergunto: o que é mais confortável para alguém que está em seu castelo acadêmico? Falar da janela ou descer ao campo?

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